Chegou-se ao esperado: um acordo interino sobre o programa nuclear do Irã. Já tínhamos muitos indícios que isso aconteceria. A eleição do suposto moderado Hassam Houhani, a condução da política externa de Obama e o impacto das sanções favoreciam o cenário para um acordo.

Os holofotes estão focados no acordo em si, quando o mais importante parece estar sendo deixado de lado. O ponto relevante não é a assinatura de um acordo, mas o tipo de acordo que foi assinado e seu significado para a questão em pauta — o programa nuclear iraniano.

Hoje a maior ameaça para a segurança internacional é o programa nuclear iraniano. Por que? Existem os motivos internos e externos. Do lado interno, o regime iraniano é um dos maiores violadores dos direitos humanos no mundo; financia, treina e arma dois dos mais ativos grupos terroristas (Hamas e Hezbollah); tem um projeto hegemônico na região; mantém o regime Sírio vivo; e ameaça riscar do mapa um dos seus rivais: Israel. Do ponto de vista externo, um Irã atômico desestruturaria o Tratado de Não Proliferação Nuclear (tratado que cuida das questões relacionadas a armas e energia atômica). O regime de proliferação nuclear seria abalado pois desencadearia uma corrida nuclear. Isso aconteceria justamente na região mais instável do planeta. Imaginem o Oriente Médio repleto de países nucleares? Arábia Saudita, Egito e Turquia iriam desenvolver sua bomba atômica. Se esses novos países entrassem para o clube nuclear, o que impediria outros países de buscar a arma mais poderosa de todas? Imaginem o mundo com 30 ou 40 países em posse de bombas atômicas!

O pior de todos os cenários seria a soma dos desafios internos e externos. Me refiro a proliferação nuclear para um grupo terrorista. O mundo entraria em choque, e simplesmente tudo mudaria caso tivéssemos um 11 de setembro nuclear. Todas as grandes capitais do mundo entrariam em estado de emergência com medo de serem alvos de um ataque terrorista nuclear. O número de mortos seria muito superior a grandes conflitos históricos. O pânico seria total. Viagens e comércio internacional seriam muito abalados. As bolsas de valores do mundo derreteriam. O tamanho do estrago moral e material é imensurável e indescritível.

A descrição do pior cenário é necessária para contextualizarmos o porque está se debatendo um acordo com o Irã. O acordo não é para restabelecer relações diplomáticas do país com o Ocidente, principalmente os EUA. Claro que isso pode ser uma conseqüência futura, mas o foco dessa discussão é, ou deveria ser, o programa nuclear. Dessa forma, a conclusão obvia é de que um acordo só faz sentido se tratar do problema central: impedir as ambições nucleares do Irã.

O acordo assinado ontem tem uma serie de problemas. Segue a lista abaixo:

I. Inspeções não garantem confiabilidade

O acordo assinado permite inspetores visitar instalações, mas isso não tem muito significado devido ao histórico do país em dificultar as inspeções e enganar inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Por exemplo, desde o relatório da AIEA de 2011, a instalação de Parchin – um complexo de testes de explosivos e parte do programa militar nuclear do Irã – tem negado acesso aos inspetores da Agência Atômica. Pior do que isso, o Irã iniciou reformas no local que estão sendo documentadas por fotos de satélite. Todo o solo da base militar está sendo asfaltado. Normalmente inspetores precisam coletar amostras do solo para localizar rastros de material radioativo. Uma vez terminada a reforma, ficará impossível uma analise confiável. Para piorar, Parchin não está na lista de locais que inspetores terão acesso de acordo com o ultimo termo entre a Agência e o Irã. Como signatário do Tratado, o Irã já deveria permitir acesso irrestrito aos inspetores. Ou seja, essa concessão não pode ser vista nem como uma concessão, mas como uma falha na sua obrigação.

II. Acordos Interinos e seus problemas

Esse acordo não é um acordo final, mas apenas um aperitivo para preparar o terreno para as conversas futuras que virão. O problema é que o aperitivo foi muito farto para com o Irã e vai balizar as discussões dentro de uma perspectiva aonde o país precisa oferecer pouco e merece receber muito. O acordo atual não coloca um freio nos aspectos mais problemáticos do programa nuclear iraniano, particularmente limitando o numero de centrifugas e garantias solidas que o país não poderá converter seu urânio enriquecido em material para uma bomba.

Os obstáculos para serem superados são enormes, e os opositores internos dentro dos EUA e do Irã precisam estar convencidos que o acordo final representa seus maiores interesses. O Congresso americano só vai concordar em suspender todas as sanções caso existam propostas objetivas de destruição do programa nuclear e ao mesmo tempo mecanismos eficazes de verificação. Nada disso existe hoje, e nem foi colocado na mesa. Um acordo satisfatório para todos os stakeholders envolvidos tem uma cara muito diferente do acordo interino assinado ontem. Em outras palavras, será que Washington e Teerã são capazes de concordar com um acordo aonde o Irã abdica por completo do seu programa nuclear e os EUA suspende todas as sanções?

III. Legitimar um estado violador

O acordo atual manda um sinal muito ruim para o mundo e outros países que buscam construir suas bombas atômicas. O acordo retira o status de violador do Irã e passa a tratá-lo como um país que nunca descumpriu suas obrigações. A legitimidade das 6 resoluções do Conselho de Segurança da ONU, demandando que o Irã encerre o enriquecimento de urânio por não cumprimento do Tratado de Não Proliferação, jamais será restabelecida. Permitir que o Irã continue seu programa de enriquecimento, mesmo que seja até 5%, demonstra um retrocesso em termos das resoluções passadas do Conselho. O Irã sempre quis ter o direito de manter seu programa de enriquecimento e a comunidade internacional sempre se posicionou unanimemente contraria sabendo dos riscos dessa capacidade. Não existe bomba atômica sem capacidade de enriquecer urânio. O acordo interino recompensa o Irã pelo seu passado de violações e afrouxa os requisitos mínimos de garantia que possam impedir o país de construir sua bomba.

IV. Líbia ou Coreia do Norte

Presidentes em segundo mandato tentam melhorar seu legado. Obama passou os últimos anos dizendo que não deixaria o Irã adquirir a bomba atômica sob sua liderança. Reparem que ele está mais preocupado em garantir que isso não aconteça durante o seu mandato e não necessariamente em resolver o problema. Obama está tentando minimizar os seus riscos, jogando o problema o mais para frente possível com o mínimo de esforço e custo no presente. Clinton tentou sem sucesso em seu segundo mandato um acordo de Camp David II para acabar com o conflito Israelense e Palestino. Bush tentou um acordo final com a Coreia do Norte. Seu governo retirou a Coreia da lista de patrocinadores do terrorismo e suspendeu algumas sanções. Em resposta, os norte coreanos redobraram seu programa nuclear e balístico. O acordo atual remete mais ao cenário da Coreia do Norte do que ao acordo assinado com a Líbia para desmantelar seu programa nuclear.

V. Assimetria de trocas

Até hoje o Irã não aceitou nenhuma das propostas de acordo. O que fez o país mudar de ideia? As sanções finalmente começaram a ter efeito e estão abalando a sua econômica. Só tem uma coisa que o regime em Teerã valoriza mais do que armas nucleares: sua sobrevivência. Na verdade a maior utilidade de possuir tais armas é garantir sua sobrevivência. As sanções estão criando mais instabilidade e colocando em risco a sobrevivência do regime. Dentro desse contexto de máxima vantagem para o Ocidente que se deu inicio as negociações em Geneva. Estranhamente no momento de maior vantagem, os EUA decidiram fazer as maiores concessões, justamente quando quem estava pronto para ceder mais era o Irã. O Ocidente ofereceu suspender algumas sanções em troca de mudanças cosméticas que não alteram em nada a infra-estrutura nuclear do Irã. O próprio EUA aliviaram suas demandas ao permitir que o Irã continuasse enriquecer urânio. Durante o primeiro mandato, o próprio governo Obama ofereceu um acordo aonde o Irã deveria importar urânio enriquecido ao invés de enriquece-lo. Essa assimetria vai produzir paradigmas perigosos para qualquer acordo definitivo além de ser leniente com o programa nuclear e não endereçar o problema central que seria impedir o Irã de desenvolver uma bomba atômica.

VI. Mudanças não acontecem tão rapidamente

O regime iraniano não deixou de ser o regime iraniano e nem tem porque deixar de ser. Negar o Holocausto, ameaçar riscar Israel do mapa, financiar terrorismo e muitos outros são algumas das políticas que continuam fazendo parte do cardápio iraniano. Eu já escrevi em outro post como o programa nuclear iraniano é em parte tão grave e problemático devido ao seu comportamento e suas políticas. Caso o governo do Irã não fosse quem é, os riscos em jogo seriam menores para todos. A retórica extremista só aumenta a tensão e mostra a essência do regime dos clérigos. O regime não mudou e não deve mudar. O ex-presidente Ahmadinejad não era o único extremista, e o atual presidente, Rouhani, só parece moderado quando comparado com seu antecessor. O líder supremo fez um pronunciamento semana passada descrevendo Israel como um “cachorro fanático” e demostrando que a ideologia extremista continua sendo o pilar do regime. Rouhani quando perguntado sobre o Holocausto respondeu que não era um historiador para confirmar sua veracidade.

O Irã não deve deixar de financiar e promover o terrorismo na região. Muito menos apoiar o regime de Assad. É difícil confiar em uma mudança na área nuclear sabendo que o governo segue o seu mesmo padrão em todas as outras áreas.

Em suma, o dilema do programa nuclear iraniano está longe de ser resolvido e o seu problema central não parece ter sido resolvido pelo acordo de ontem. Vamos acompanhar as cenas dos próximos capítulos.

 

 Artigo original: http://exame.abril.com.br/rede-de-blogs/risco-politico-global/2013/11/25/o-significado-do-acordo-nuclear-com-o-ira/

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