Há diversas opiniões sobre a legalidade do bloqueio à Faixa de Gaza imposto por Israel. Segundo a “Declaração de Leis de Guerras Navais”, de 1909, partes em estado de guerra têm o direito de impor um bloqueio naval ao inimigo. Da mesma maneira, o Manual de San Remo (1994), que regula conflitos armados no mar, legitima o uso do bloqueio como arma de guerra. No entanto, algumas interpretações defendem que estas leis só se aplicam no caso de um “conflito armado internacional” – e que o fato de Gaza não ser um Estado desqualifica o caso diante dos tratados acima. É evidente que este é um debate jurídico banhado por motivações políticas, em que cada um dos lados busca uma visão das leis que justifique seus atos.
De todo modo, há argumentos razoáveis para justificar o bloqueio. O Hamas, cujo regime comanda o território, é uma entidade política que prega a destruição do Estado de Israel. O Hamas jamais poupou esforços para agir de forma violenta contra os cidadãos israelenses, seja com homens-bomba em ônibus e cafés ou com mísseis caseiros. Existe, desse modo, uma boa dose de validade para o argumento de legítima-defesa. Impedir que armas sejam contrabandeadas para a Gaza com o objetivo de atacar civis israelenses é obrigação de qualquer governo de Israel.
Do ponto de vista político, o debate deve ser sobre a utilidade do bloqueio. Ele foi implementado em 2007, um ano depois de o Hamas vencer as eleições legislativas em todo o território palestino, incluindo a Cisjordânia. Na ocasião, homens armados do grupo islâmico tomaram o poder à força, excluindo fisicamente a presença dos rivais palestinos do secular partido Fatah.
Já se vão mais de quatro anos. No período, o lançamento de foguetes contra comunidades no sul de Israel cresceu muito. Algumas cidades, como Sderot, a poucos quilômetros da Faixa de Gaza, têm abrigos anti-bomba em parques para crianças e pontos de ônibus. Centenas de milhares de israelenses vivem há anos à espera do alerta vermelho, o aviso de que um míssil está a quinze segundos de atingir o alvo.
A situação na Faixa de Gaza também não é boa. (Ainda assim, é bem melhor do que os relatórios de grupos supostamente humanistas que a chamam de campo de extermínio a céu aberto.) Organizações humanitárias levam comida, roupas e remédios para a população. Não falta o básico em Gaza. Mas a economia do território foi destruída pelos anos de bloqueio, principalmente após a guerra que Israel travou contra o Hamas no inverno de 2009 e que deixou mais de mil palestinos mortos. Os destroços deixados pelos bombardeios israelenses não puderam ser reconstruídos porque materiais de construção estão proibidos pelo bloqueio de Israel. O desemprego em Gaza é imenso, o que é especialmente perigoso em um pequeno lugar aonde vivem um milhão de pessoas, boa parte com menos de dezoito anos. (Gaza tem a população mais jovem do planeta.)
Israel diz que usa o bloqueio a Gaza como forma de se defender e de exercer pressão sobre o Hamas. A pergunta que se faz é qual o objetivo desta pressão. Os israelenses não têm interesse no fim do regime islâmico em Gaza. O poder jamais seria devolvido para a Fatah, partido que controla a Autoridade Palestina (AP), entidade reconhecida pelo comunidade internacional e com quem Israel oficialmente aceita negociar. A estrutura e a presença da AP foram completamente apagadas de Gaza no golpe do 2007. Quem ameaça o regime do Hamas, atualmente, são grupos islâmicos radicais, para quem o Hamas é excessivamente conciliador com Israel.
A única lógica é que o boqueio seja uma forma de pressionar o Hamas a abandonar, ou ao menos suavizar, sua belicosidade. É um moeda de troca. Israel só permitiria que a economia de Gaza voltasse a funcionar, o que beneficiaria o regime, se o Hamas parasse de atirar sobre a cabeça dos israelenses.
Mas, para isso acontecer, é preciso que Israel e Hamas negociem. O acordo que recentemente libertou o soldado Gilad Shalit, depois de mais de cinco anos de cativeiro em Gaza, em troca de mais de mil prisioneiros palestinos, é apenas mais um entre os indícios de que pode haver diálogo entre as partes. Há espaço para negociações baseadas em interesses comuns. O Hamas quer, acima de tudo, manter o poder em Gaza. E, com a economia em frangalhos, a combinação de insatisfação popular com uma onda de protestos e revoltas pelo mundo árabe pode ser fatal. Para Israel, o objetivo final é manter a segurança dos cidadãos que vivem no sul do país. Para atingir esse objetivo, é preciso apaziguar o Hamas e também impedir que grupos ainda mais radicais ganhem força em Gaza.
É verdade que não há confiança entre as partes, inimigos mortais. Mas pode-se chegar a um entendimento se houver confiança no processo de negociação. Líderes árabes costumam a voltar de Israel com bons acordos. Anwar Sadat fez a paz com o Estado judeu, garantiu mais de trinta anos de paz para o Egito, recuperou os territórios ocupados na Guerra de 1967 e ainda firmou uma parceria duradoura com os Estados Unidos, ficando atrás apenas de Israel quando se trata de ajuda externa americana. O Rei Hussein, da Jordânia, recebeu tecnologia israelense para irrigação, fundamental em seu país quase todo desértico. Yasser Arafat, pai da causa palestina que usou e abusou do terrorismo, passou a levar vida de estadista respeitado no mundo todo ao longo década de noventa, anos em que ainda se acreditava no Processo de Paz de Oslo.
O Hamas vem dando alguns sinais de que quer passar para o campo dos moderados. A coalizão que sempre o uniu aos inimigos de Israel e de Ocidente – Irã, Síria e Hezbollah – pode sofrer sérios danos se e o regime do sírio Bashar al-Assad cair diante da crescente violência no país. A liderança do grupo palestino, que atualmente vive em Damasco, visitou recentemente Amman e Cairo em busca de um novo lar – e de um aliado que possa lhe garantir a sobrevivência em tempos difíceis como os de hoje. Tanto Egito quanto Jordânia mantêm relações com os israelenses e são amigos do Ocidente. Pesam também declarações de líderes do Hamas de que estariam dispostos a assinar um “cessar-fogo de longo prazo” com Israel.
Para que fosse garantida a segurança exigida por Israel no caso do fim do bloqueio, seria necessário que as mercadorias a desembarcar em Gaza fossem inspecionadas para que se certifique de que não se trata de armas. O Egito seria um candidato natural a realizar essa função, mas a fronteira entre Gaza e a Península do Sinai já é suficientemente porosa para que os egípcios tenham a confiança dos israelenses para desempenhar esse papel. Forças ocidentais seriam vistas pelos palestinos como imperialistas a serviços do sionismo. O que chegaria mais perto do aceitável seria uma combinação de alguns países europeus com algum país árabe, possivelmente o Qatar, que já abrigou até um escritório de representação comercial israelense e anda interessado em operações para projetar influência sobre o mundo árabe. (Doha opera sob o olhar atencioso da vizinha Arábia Saudita, cujo objetivo é combater a presença do Irã na região e para isso conta com seus parceiros do Golfo Pérsico.)
O desafio maior seria fazer o Hamas se reinventar, deixando pra trás a violência que marcou sua visão de resistência, para acatar os requisitos que o fariam um agente civilizado e legítimo para participar do diálogo político. Do outro lado, seria preciso convencer Israel a abandonar uma de suas doutrinas básicas, a que prega que a segurança do país deve ser sempre feita pelos próprios israelenses, jamais por terceiros. Desenhar um processo de negociação que permita às partes uma transformação profunda de suas posições é uma missão complexa. Exige tempo, paciência e trabalho. Mas, para que aconteça, é preciso, a cima de tudo, que Israel e Hamas negociem. Eles não precisam nem concordar nem se gostar, mas é interesse de ambos que comecem a conversar.