A rodada de eleições do último final de semana demonstrou ao mundo, mais uma vez, como uma crise econômica é no fundo uma crise política. Não é de se surpreender, uma vez que o raison d’être da União Européia foi, desde o início, baseado em questões essencialmente políticas.

Na França, o socialista e crítico aberto da austeridade sem crescimento, François Hollande, venceu Nicolas Sarkozy. Na Grécia, como já antecipado pelo Insight Geopolítico, diversos partidos ganharam espaço no Parlamento, impossibilitando a coalizão necessária para a continuidade no processo de implementação das medidas de austeridade – sem as quais os pacotes de ajuda financeira não virão. No Estado de Schleswig-Holstein, a coalizão de Angela Merkel também sofreu uma derrota, dando sinais de que mesmo na Alemanha, em alguns locais, já existe uma oposição forte ao status-quo.

O projeto de moeda única não levou em consideração fatores políticos. Na história, nunca houve um caso de sucesso de um projeto de união monetária sem a união política.

Nos anos em que a economia esteve vibrante, o sentimento europeu pelo projeto da moeda única manteve-se fortalecido, facilitando a cooperação e buscando avançar em direção à união política – sem a qual é inviável a sobrevivência da união monetária. Porém, a crise trouxe uma mudança drástica neste cenário. Hoje, o debate não é mais sobre como consolidar a união política, mas sobre quem se prontificará a salvar a UE do colapso. A Alemanha, economia mais forte e peça central do projeto europeu, não se mostra disposta a exercer tal papel caso suas precondições não sejam atendidas.

É neste ponto que entra o fator geopolítico.

Com o colapso da URRS e a reunificação alemã, os medos de uma Alemanha forte e assertiva voltaram à tona. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os governos da França e do Reino Unido ja se opunham ao processo de reunificação alemão. Como solução, veio a ideia da união monetária, que tornaria ainda mais sólidos os laços entre as potências européias – especialmente Paris e Berlim.

Hoje, este sentimento volta a aparecer de forma contida. Países do sul da Europa vêem uma maior assertividade alemã, principalmente com os requisitos exigidos por Berlim para a liberação dos grandes pacotes financeiros para as economias endividadas. O desequilíbrio econômico causado pela crise deu origem a um novo problema de cunho geopolítico.

Um fator largamente desconsiderado pelos fundadores da UE foi a identidade nacional dos povos europeus. Desde a fundação do bloco, pouca ou nenhuma atenção foi dada ao fato de que, embora o desejo pela paz e estabilidade fosse consensual, não havia – e não há até hoje – uma noção popular e difundida da identidade ‘européia’ e não apenas grega, belga ou holandesa.

O parlamentar Geert Wilders, líder do Partido da Liberdade - ao retirar apoio à coalizão por questões ideológicas, o governo holandês ruiu

Desta forma, tão logo a crise chegou, populações tanto dos países credores como devedores abraçaram ideais nacionalistas. A confirmação veio através dos resultados das últimas eleições. A ultra-direita e a extrema esquerda tiveram resultados expressivos nas recentes eleições. Ideias anti-européias, anti-imigração e pró-nacionalistas ganharam muito espaço, criando obstáculos consideráveis não só à governância doméstica destes Estados, mas também, num âmbito macro, à estrutura política da UE.

Neste contexto, dois cenários se colocam frente ao futuro da Europa; um é a manutenção do formato atual, mediante à imposição de medidas de austeridade severas a diversos países, gerando anos de depressão que poderão se traduzir em mais instabilidade política – grande parte destes países tem altos índices de desemprego entre a população jovem, uma mistura perigosa.

A segunda opção, logicamente, é a gradual saída de alguns países da zona do Euro – hoje o caso provável seria a Grécia. As consequências desse cenário podem ser desastrosas, dependendo de como os mercados avaliarem a capacidade dos outros membros remanescentes em se manter no bloco – principalmente os demais países hoje em situação de risco, à exemplo de Espanha e Portugal. Isso sem mencionar os impactos subsequentes que o caos social grego pós-euro pode gerar sobre o resto da Europa.

A UE se vê hoje em uma encruzilhada, na qual os dois caminhos serão difíceis de se percorrer. Caso ela sobreviva, cenário mais provável, ela perderá grande parte da força política que já teve, embora possa ser capaz de manter o equilíbrio geopolítico.

A segunda maior economia da União Européia pode ser o núcleo de um novo recrudescimento da crise no continente. Diferentemente de países periféricos, cujas economias em semi-colapso já deram alguns sustos nos mercados, um solavanco vindo de Paris poderia acarretar até mesmo na dissolução do bloco, que tem como pilares justamente a própria França e a Alemanha.

Recordista em gastos públicos (56% do PIB) e em volume de empregados pelo Estado por grupo de 1.000 habitantes (90, contra 50 na Alemanha), a economia francesa começa a dar sinais claros de uma realidade já não tão recente: sua competitividade diminuiu muito ao longo dos últimos anos, criando um descompasso com uma folha de pagamentos estatal digna de países como Suécia. Para se ter uma ideia, em 2000 o custo/hora de um trabalhador francês era 8% mais barato que o de um alemão. Hoje o mesmo trabalhador tem um custo/hora 10% mais caro que na Alemanha.

Com uma dívida pública beirando os 90% e uma economia semi-estagnada, o modelo francês de estado de bem-estar social inchado é solo fértil para a eclosão de uma crise severa.

François Hollande e Nicolas Sarkozy - eleição francesa pode ser decisiva para um novo recrudescimento da crise

É nesse contexto que entram as eleições, com o segundo turno marcado para 6 de Maio. O atual presidente, Nicolas Sarkozy, enfrenta um empolgado François Hollande, proveniente do socialismo francês. O primeiro turno terminou com um quase empate técnico entre ambos. As extremas direita (Marine Le Pen com 18%) e esquerda (Jean-Luc Melenchon com 11%) ficaram em 3o e 4o lugares, respectivamente.

A possibilidade de Hollande vencer Sarkozy não só assusta este último – que entraria para a história como o segundo presidente da 5a Republica (iniciada em 1958) a não se reeleger – mas, principalmente, os mercados. Defendendo políticas pouco ortodoxas, como a renegociação do Pacto Fiscal Europeu, que regula pela responsabilidade orçamentária dos Estados-membro, aumentar o salário mínimo e retomar a aposentadoria para os 60 anos, Hollande passa a ideia de que vai colocar o processo de contenção da crise européia em xeque.

Por mais que seja importante ler tais discursos e posições pelo prisma eleitoral, tais medidas representam um risco grande à Franca e à Europa. Dado que o eleitorado frances é reconhecidamente reacionário a mudanças no status quo do modelo de estado paternalista – alvo principal das medidas de austeridade tão criticadas por Hollande – suas chances de vitória não são pequenas. E, mesmo que muitos dos eleitores franceses não estejam convencidos de que Hollande é a melhor opção, a rejeição a Sarkozy pode lhe dar a presidência, já que grande parte do eleitorado não gosta da ideia de mais 5 anos da administração atual.

O desempenho da extrema direita com Marine Le Pen, e da extrema esquerda com Jean-Luc Mélenchon, também diz muito sobre a cena política local. A fobia com quaisquer influencias externas na sociedade francesa – seja a globalização ou mesmo a UE – se refletiu no desempenho de candidatos mais extremistas. A França adotou o mantra de que os males sofridos hoje pela sua economia têm sua raiz na abertura do país para o mundo. Entretanto, os franceses não parecem compreender que, sem as receitas provenientes de um mercado aberto, será impossível balancear os gastos públicos excessivos do Estado francês e evitar um colapso.

Risco de fragmentação da UE existe e não é pequeno

O grande perigo do discurso de François Hollande está justamente no fato de suas propostas estarem sintonizadas com os valores das massas. Mesmo que ele não cumpra parte das promessas de campanha, as pressões para tanto serão grandes, podendo ter resultados políticos inesperados e com conseqüências difíceis de se prever e quantificar. Para dar um exemplo, sua disposição a lutar por uma revisão do Pacto Fiscal Europeu pode gerar indisposições com a Alemanha, o que levaria instabilidade ao campo político europeu.

Caso a França siga este caminho, será muito mais fácil para os outros países europeus adotarem políticas similares, uma vez que há um crescente descontentamento com as medidas atuais pela ausência de mecanismos favoráveis ao crescimento. Nesta situação, pode haver um efeito cascata capaz de enterrar o projeto de integração europeu.

Recentemente, a Alemanha anunciou que irá desativar todas as suas usinas nucleares, responsáveis por cerca de um quarto da produção de energia do pais, até o ano de 2020. O anuncio lançou dúvidas sobre a segurança energética de todo o continente europeu. Entretanto, o aspecto mais importante da decisão é que ela coloca em xeque o futuro da integração política e econômica da Europa, além de se desdobrar para questões de fundamental importância, como a sobrevivência do Euro e a recuperação dos países do continente que tiveram suas economias devastadas pela crise de 2008.

Segundo a chanceler alemã Angela Merkel, a opção pelo fim da energia nuclear foi consequência do desastre na usina de Fukoshima no Japão após o terremoto e o tsunami que arrasaram o país no último mês de março. Chama a atenção, entretanto, o fato de que a própria Merkel descartou esta alternativa apenas seis meses antes. A decisão foi voltada a agradar o público interno que impôs severas derrotas eleitorais ao partido da chanceler em pleitos regionais recentes. Pesquisas mostram que a população alemã, em sua maior parte contrária ao uso de energia nuclear, intensificou sua posição após o acidente na usina japonesa. A medida possui enorme relevância regional, uma vez que afeta também a estratégia de segurança energética de aliados europeus. Prova disso é o fato de que, no dia seguinte ao anúncio de Merkel, o Ministro da Energia da França, Eric Besson, chamou todos seus colegas da União Européia (UE) para uma reunião de emergência. Atualmente, a Alemanha serve como segurança para o fornecimento a outros países em períodos de pico na demanda. Dessa forma, o crescimento do preço da energia produzida pela Alemanha impacta a economia de seus vizinhos. Há, ainda, o temor de que a nova política alemã faça crescer a dependência ao gás natural vendido pela Rússia, aumentando a influência de Moscou sobre toda a região.

No entanto, a principal queixa francesa veio do fato de que a decisão alemã não foi coordenada com os parceiros europeus. Há anos, discute-se a idéia de que a integração dos mercados de energia da Europa seria fundamental para aumentar o poder de barganha dos países da região, garantindo maior segurança energética. A decisão unilateral tomada pela nação mais rica da Europa praticamente enterra a possibilidade.

Esta postura gera especulações sobre a intenção da Alemanha em assumir a posição de liderar a Europa. Como é o país mais importante do continente, várias outras questões dependem do interesse alemão em tomar uma atitude mais ativa no cenário regional. A mais sensível delas está na economia. A crise da dívida dos países periféricos da UE, com destaque para Grécia, Irlanda e Portugal, não pode ser equacionada sem uma participação determinante da maior economia da zona do Euro. A Alemanha já garantiu que fará tudo para salvar a moeda comum, mas o conceito de ajuda financeira a outros países tem se tornado cada vez mais impopular para os alemães – e a decisão sobre as usinas nucleares mostra que o governo está disposto a sacrificar interesses externos por razões internas. Outra preocupação crescente é com a questão da imigração. Com as revoltas no Mundo Árabe se intensificando, teme-se que uma onda de refugiados procure abrigo na Europa. Sem uma política unificada para lidar com o tema, os acordos sobre livre-circulação de pessoas podem dar lugar à volta do controle de fronteiras entre os membros da UE. Ainda nesta esfera, a abstenção alemã na votação do Conselho de Segurança da ONU, que autorizou o uso da força na Líbia, colocou a Alemanha em lado oposto aos seus principais parceiros no bloco – França e Reino Unido – e isolou ainda mais o país na política do continente.

Com a construção do gasoduto Nordstream, prevista para 2012, o fornecimento de gás da Rússia para Alemanha ficará livre das crises políticas da Europa Oriental

Do ponto de vista geopolítico, a aproximação entre Berlim e Moscou expõe a divergência entre os interesses de diversos países europeus. Desde o fim da Guerra Fria, a Alemanha deixou de ser o centro do jogo político travado pelas potências na Europa. Estados mais ao leste passaram a determinar a zona de contenção entre a Europa aliada ao Ocidente e a Rússia.  Isso significa dizer que Polônia, Romênia, Hungria, República Tcheca e os países Bálticos passaram a ser os primeiros estados a sofrerem as consequências no caso de uma agressão russa. Por esta razão, a Alemanha se sente confortável em aprofundar sua aliança com Moscou sem temer por sua segurança, uma vez que o Exército Vermelho está distante de suas fronteiras. Ao fim de 2012, estará pronto um gasoduto que irá fornecer gás natural diretamente da Rússia para a Alemanha pelo mar Báltico, deixando o fornecimento de energia independente das flutuações políticas da Europa Oriental (em 2005,  a Rússia cortou o fornecimento de gás para toda a Europa por conta de uma crise política na Ucrânia em que a população foi às ruas para reverter os resultados de uma eleição fraudulenta que havia prejudicado o candidato que se opunha a Moscou).

Com o fim da Guerra Fria, a fronteira entre a Europa e a Rússia moveu-se para o Leste, deixando a Alemanha, país mais rico da região, livre para fazer negócios com os russos sem temer pela sua segurança

Ao mesmo tempo, os países que formam essa nova zona de contenção estão dispostos a frear a influência da Rússia sobre si. A Polônia vem liderando esforços para incrementar a capacidade de segurança do chamado Grupo de Visegrad (V4), que reúne também Hungria, República Tcheca e Eslováquia. Estes países têm razões históricas para temer a hostilidade de Moscou e, ainda que membros da aliança militar do Ocidente, a OTAN, eles crêem que os Estados Unidos concentram a maior parte de seus esforços nos conflitos do Oriente Médio. Recentemente, Polônia e Suécia anunciaram acordos de parcerias estratégicas. Estocolmo vê seus interesses no Mar Báltico ameaçados pela crescente presença russa na região. É evidente que nenhum desses países vê com bons olhos a aproximação entre Moscou e Berlim, ainda mais quando se trata de um assunto de alta importância como é o caso da segurança energética.

Desde o fim da primeira metade do século XX, a Europa engajou-se em um caminho de integração que criou a UE, o maior bloco comercial do mundo. A continuidade e o fortalecimento deste processo depende da capacidade da maior economia do continente, a Alemanha, de liderar os esforços para acomodar as divergências entre os membros do grupo. A história recente mostra, no entanto, que Berlim muitas vezes prefere agir de forma independente, colocando os interesses de seus parceiros europeus em segundo plano.

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