No último dia 11 de outubro, Hamas e Israel anunciaram que chegaram, com mediação do Egito, a um acordo para libertar o soldado israelense Gilad Shalit, mantido em cativeiro na Faixa de Gaza há mais de cinco anos. Em troca, Israel deve soltar mais de mil prisioneiros palestinos que cumprem pena no país. O fato de as partes terem alcançado um entendimento – após um longo período de intensas negociações e acusações mútuas – diz bastante sobre as recentes mudanças geopolíticas no Oriente Médio.

O soldado israelense Gilad Shalit em vídeo divulgado pelo Hamas em setembro de 2009

Desde o ano 2000, quando uma onda de violência tomou conta de Israel e dos Territórios Palestinos, o Hamas ganhou enorme peso político, desafiando décadas de hegemonia do Fatah, o grupo liderado historicamente por Yasser Arafat. Através de atentados terroristas que mataram cerca de mil civis israelenses, o Hamas trouxe para a agenda da causa palestina o fundamentalismo islâmico (o Fatah sempre foi secular e se apóia no nacionalismo árabe) e o uso de homens-bomba como armas de resistência.

Principalmente após 2007, quando, por meio de um violento golpe de Estado, o Hamas varreu o Fatah da Faixa de Gaza e tomou conta do território (desocupado por Israel em 2005), o grupo islâmico palestino passou a receber consistente apoio do Irã. Há diversas razões para essa aliança. Com o Iraque e o Afeganistão, em suas fronteiras orientais e ocidentais, ocupados por tropas americanas, Teerã subiu seu tom contra os Estados Unidos e Israel e acelerou seu programa nuclear, considerado por seus inimigos como tendo fins militares. No conflito árabe-israelense, os iranianos dão suporte à milícia libanesa Hezbollah e ao Hamas em Gaza, ambos armados por Teerã contra Israel.

A partir do Líbano com o Hezbollah e da Faixa de Gaza com o Hamas, o Irã manteve quente a situação no norte e no sul de Israel

Parte fundamental da aliança entre o Irã e seus afiliados é o regime de Bashar al-Assad, na Síria. Para que as armas iranianas cheguem ao Hezbollah, é preciso que passem pelo território sírio (no verão de 2006, a milícia libanesa infringiu importantes perdas a Israel em uma guerra de mais de um mês). Quanto ao Hamas, a sede do grupo fica em Damasco, aonde vive seu principal líder, Khaled Mashaal, sob a proteção de Assad.

O acordo que libertará Gilad Shalit de seu cativeiro em Gaza dá claro sinais de que o Hamas está se distanciando do campo liderado por Teerã. E este fato não pode ser visto como uma surpresa. Enquanto os líderes iranianos, sírios e os libaneses do Hezbollah são muçulmanos xiitas (Assad é alauíta, uma corrente do islamismo xiita), os palestinos do Hamas são sunitas. Como é enorme e crescente a rivalidade entre as duas vertentes religiosas, é natural que o Hamas se sinta desconfortável em fazer parte desta aliança. Além do mais, desde que Assad começou a enfrentar fortes protestos internos, a percepção de sírios e iranianos é a de que o Hamas não está se esforçando o suficiente para apoiar o regime de Damasco. Este estranhamento colaborou ainda mais para que o centro de poder do Hamas se fixasse em Gaza, território que o grupo de fato administra. Como resultado, o Hamas se tornou mais pragmático, aproximando-se do Egito, seu único vizinho árabe – e sunita. Já se fala, inclusive, que o Cairo deve ser o próximo destino da liderança do Hamas que hoje vive na Síria.

De fato, a coordenação entre Hamas e Egito, inimigos históricos, é um dos pontos mais importantes do acordo para a troca de prisioneiros. O regime de Hosni Mubarak jamais se entendeu com a liderança palestina do Hamas em Gaza. Temendo o fundamentalismo islâmico em seu país, o líder egípcio combatia a Irmandade Muçulmana (grupo que nasceu no Egito na década de 20 e é considerado como patrono do Hamas) e manteve a passagem entre o Egito e Gaza fechada mesmo quando o território foi alvo de pesados ataques militares israelenses em janeiro de 2009.

Esta situação começou a mudar com a queda de Mubarak em fevereiro deste ano. A junta militar que o substituiu no comando do país legalizou a Irmandade Muçulmana como partido político, abriu a passagem de Rafah entre Gaza e o Egito (simbolicamente, já que a fronteira funciona com enormes restrições e em horários limitados) e elevou o tom contra Israel. É evidente que os militares egípcios tomaram essas medidas como forma de jogar para o público em um momento de instabilidade política interna, mas elas foram muito bem recebidas em Gaza.

Da mesma forma, Israel viu nas transformações políticas pelas quais vem passando o Mundo Árabe como um fator de incentivo para fechar o acordo. O próprio primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, declarou temer que, perdida esta oportunidade, a volta de Shalit se tornasse impossível. A percepção de Israel é a de que a chamada Primavera Árabe pode espalhar o fundamentalismo islâmico pela região. Também colaborou o interesse dos israelenses em fortalecer a relação com o Egito. Metade dos presos palestinos serão libertados como “ato de boa vontade” para os mediadores do acordo. Recentemente, atos anti-Israel nas ruas do Cairo e declarações pouco amistosas dos líderes militares egípcios colocaram o acordo de paz entre os dois países em risco pela primeira vez em mais de trinta anos.

A Faixa de Gaza, administrada pelo Hamas, é um pequeno território encravado entre Israel e Egito

A triangulação entre o Egito, Israel e o Hamas é extremamente importante, pois ela pode definir a situação de segurança na região. Desde a queda de Mubarak, grupos islâmicos se aproveitaram do vácuo de poder para usar a península do Sinai, no Egito, para promover ataques a Israel. Estes grupos, provenientes da Faixa de Gaza, não podem operar na região sem a ajuda ou a autorização do Hamas. Até agora, os palestinos vinha mostrando interesse na escalada da violência entre Israel e o Egito por acreditar que ela animaria os sentimentos anti-Israel da população egípcia, o que enfraqueceria a junta militar que controla o país (e que, apesar da retórica, manteve os acordos com os israelenses) e fortaleceria a Irmandade Muçulmana.

É cedo ainda para afirmar que o Hamas está abandonado seus aliados tradicionais e, mais ainda, para esperar que os palestinos deixarão de usar táticas de violência contra Israel. Da mesma forma, é incerto o quanto Cairo conseguirá influenciar o Hamas a ponto de manter a segurança na região. No entanto, com Assad ocupado em reprimir a oposição na Síria e com Teerã a milhares de quilômetros de distância, o Hamas procurará novos aliados com quem compartilhe interesses. E como nada é mais importante para o grupo palestino, neste momento, do que manter o poder na Faixa de Gaza, o Egito se torna um parceiro natural. Este realinhamento de forças deve impactar significativamente o conflito árabe-israelense e, por consequência, toda a política da região.

Não há perigo maior para a economia mundial na atualidade do que a radicalização política nos Estados Unidos. A recente disputa entre a Casa Branca e a oposição Republicana, que controla a Câmara dos Deputados, sobre a elevação do teto da dívida do país, evidenciou o imenso fosso que separa os dois principais partidos políticos americanos. Os lados não são mais capazes de concordar nem sobre o básico, nem sobre o mais essencial para o bom funcionamento do país.

O resultado é que a confiança na economia americana ficou profundamente abalada. Analisando friamente os números, não há nenhum motivo para os investidores temerem pela incapacidade dos Estados Unidos de honrarem com seus compromissos no curto e no médio prazo, apesar do crescente e famigerado déficit. No entanto, para o futuro, há preocupações evidentes. O envelhecimento da população, os crescentes custos de segurança social e outros problemas estruturais podem vir a ser uma carga que nem a potente economia dos Estados Unidos seja capaz de suportar.

É possível que reformas bem realizadas corrijam os caminhos para uma trilha saudável. Mas sem um entendimento sobre o que mudar, não há como implementá-las. As transformações necessárias para evitar o risco de um colapso da economia americana no longo prazo só podem ser realizadas se Democratas e Republicanos chegarem a um mínimo de entendimento para fazer a máquina andar.

O Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em primeiro plano, e Deputado Eric Cantor, Líder da Maioria Republicana na House of Representatives.

A mesma lógica acontece com a atual e profunda crise econômica por que passam os Estados Unidos. Os remédios oferecidos pelos liberais, que se identificam com o Presidente Barak Obama, são contrários às soluções propostas pelos conservadores, da oposição. Do lado da esquerda, defende-se que não há investimentos porque a falta de trabalho e o estouro da bolha das hipotecas fizeram sumir a demanda. A resposta, então, seria colocar as pessoas para trabalhar, aumentando os gastos do governo, aproveitando para reconstruir a decadente infra-estrutura do país e investindo pesado em programas de educação para gerar mão de obra qualificada. À direita, a ideia é agir com planos de austeridade para reduzir a dívida do país (que hoje é recorde histórico), além de encolher ainda mais o Estado, reduzindo impostos, cortando gastos e diminuindo regulações para que o mercado se sinta livre para investir e gerar os empregos de que o país precisa.

Até aí, nada de novo. De modo geral e com pequenas mudanças, é este o discurso de Democratas e Republicanos há algumas décadas. O que mudou é que os lados estão pouco dispostos a ceder em suas posições. E isto preocupante, especialmente no caso do sistema político americano. Lá, as forças foram distribuídas pelos pais fundadores da nação, os reverenciados founding father, de modo a haver instituições com poderes que se sobrepõem. O objetivo desse desenho (que é bastante diferente de outro modelo, o Parlamentarismo, que é usado em importantes democracias, principalmente na Europa e no Japão) é forçar que haja acordo, evitando que se concentre muito poder em poucas mãos, alcançando o equilíbrio por meio de constante vigilância entre os lados.

O problema é que, quando as partes não conseguem levantar da mesa com um mínimo de entendimento, o sistema deixa de funcionar com eficiência. É o que acontece neste momento. De certa forma, é natural que em momentos de crise haja uma procura maior por respostas simples. E discursos radicais nada mais são do que uma grande simplificação da realidade.

Como acontece sempre que duas ideias se opõem de forma extrema, a melhor alternativa repousa serenamente em algum lugar entre elas. No caso da crise americana, aumentar os gastos do governo para recuperar o nível de emprego e, por consequência, fazer crescer a demanda e o investimento parece fazer bastante sentido. Também são coerentes os argumentos dos Democratas de que é preciso investir em educação, inovação e infra-estrutura para competir com concorrentes que os americanos não tinham no passado, como chineses e indianos. Por outro lado, os problemas a pressionar o futuro requerem uma certa dose da austeridade fiscal defendida pelos Republicanos. Nesse mesmo campo, não há como negar que regulações e impostos, ainda que necessários para evitar novas crises como a que vivemos, sejam um obstáculo para a competitividade da economia.

Há razões para acreditar que os Estados Unidos irão superar seus entraves políticos. Apesar das demonstrações de fraca liderança do Presidente Obama e da criatividade dos conservadores radicais do movimento Tea Party para distorcer a realidade, a democracia americana se mantém robusta e sólida há mais de dois séculos e sobreviveu a situações bem complexas, como a segregação racial que existia em vários Estados do país até a década de 60 do século passado. E não se pode esquecer que a radicalização do debate traz sempre a oportunidade de mais debate, de mais ideias. Ainda que haja muito ruído e retórica, as discussões entre liberais e conservadores é o que, no final das contas, levará ao equilíbrio. Tomara que a campanha presidencial do ano que vem, na qual tanto o Presidente quanto a oposição já estão bastante engajados, traga mais do que acusações levianas e propostas populistas. Para o bem da economia de todo o mundo, é fundamental que os políticos americanos reencontrem o caminho do entendimento e que a poderosa capacidade intelectual dos Estados Unidos encontre um caminho estável e próspero para o país.

Israel vive hoje uma situação delicada. Ele parece acreditar que pode conviver com uma derrota na próxima Assembléia Geral das Nações Unidas (AG) – marcadas para o fim deste mês de setembro – em que a Autoridade Palestina pretende colocar em votação o reconhecimento e a inclusão do Estado Palestino como mais novo membro da organização. Afinal, este é o mesmo órgão que já reconheceu os direitos nacionais palestinos em 1988 – sem falar da própria resolução que fundou o Estado de Israel em 1947, que previa um Estado árabe na região – e que equiparou o sionismo a uma ideologia racista em 1975. (Ao contrário do Conselho de Segurança (CS), as decisões a AG não têm valor de lei.) Mas, dessa vez, os palestinos pleiteiam o reconhecimento de um Estado dentro das fronteiras de 1967, consistindo na Faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. A posição do governo israelense é de os Estados de Israel e da Palestina devem ser divididos por fronteiras que levem em conta mudanças populacionais (há enormes blocos de assentamentos construídos no lado palestino da linha de 1967), a segurança do Estado de Israel e a questão religiosa, uma vez que lugares sagrados para o judaísmo encontram-se na parte ocupada de Jerusalém – considerada por Israel sua capital eterna e indivisível.

De qualquer maneira, é pouco provável que os palestinos consigam voltar de Nova York em setembro como um membro pleno da ONU. Para isto seria necessário uma aprovação do CS, onde o veto americano deve barrar a proposta. Mas, ainda resta a alternativa de ser aceito como “Estado não-membro” (como o Vaticano), para a qual basta conquistar o voto de dois terços dos 193 membros que compõem a AG, o que os palestinos não devem ter dificuldades de conseguir.

Para Israel, a única maneira de impedir este revés no campo diplomático seria voltar à mesa de negociações, admitindo um parceiro com muito mais poder de barganha do que aquele com quem os israelenses negociam desde o início da década de noventa.

Israel parece não querer sucumbir a esta hipótese. Acredita que a vitória dos palestinos na ONU seria um mal menor. Ao mesmo tempo, trabalha nos bastidores diplomáticos para evitar uma derrota, ou que ela pelo menos não seja por um placar muito amplo. A estratégia israelense consiste em convencer outros países de que o estabelecimento do Estado Palestino deve ser feito por meio de negociações bilaterais e que o reconhecimento por parte da ONU antes que as partes tenham chegado a um acordo fere a legitimidade de Israel.

Até o momento, Itália e Alemanha disseram que vão votar contra a resolução, além do tradicional aliado, os Estados Unidos, enquanto o Reino Unido deve se abster. O fato é que a campanha diplomática de Israel não deve obter muito sucesso. A visão que predomina na comunidade internacional é de que boa parte da culpa pela falta de negociações se deve à intransigência de seguidos governos israelenses, que mantiveram a construção de assentamentos nos territórios ocupados e pouco fizeram para diminuir o fardo da presença militar israelense em terras palestinas.

A votação na ONU pode não ser tão catastrófica para Israel como muitos esperam. Até porque, do ponto de vista legal, a acusação pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU de que Israel cometeu crimes de guerra durante a Guerra de Gaza em janeiro de 2009 foi mais grave e Israel sobreviveu a ela. Mas em termos simbólicos, a votação pelo reconhecimento das fronteiras do Estado Palestino tem bem mais poder de repercussão. Ela acontecerá na sede da entidade em Nova York diante dos olhos do mundo todo e virá inundada por discursos dos mais importantes líderes mundiais, que não perderão a chance de defender, em uma tribuna global, a legítima causa de um povo que vive sob ocupação estrangeira há mais de quarenta anos.

Não há como negar que a opinião pública mundial vê Israel com olhos cada vez mais negativos. A operação militar contra a flotilha que tentava furar o bloqueio imposto a Faixa de Gaza em maio de 2010 mostrou a facilidade com que Israel é condenado perante o mundo. Nem o fato do território palestino ser governado pelo fundamentalista islâmico (e terroristas para muitos) Hamas e a evidência de que a embarcação humanitária conduzia diversos membros agressivos de organizações radicais foram suficientes para esconder a má vontade da comunidade internacional com Israel. O argumento da necessidade de defender a segurança do país em uma vizinhança hostil já não é mais totalmente aceito para explicar a belicosidade do Estado judeu.

O reconhecimento do Estado Palestino na ONU também será um potente combustível para o chamado movimento de deslegitimização que, como diz o nome, busca corroer a legitimidade de Israel. Grupos que andam espalhando o discurso anti-Israel pelos Estados Unidos e pela Europa podem ganhar ainda mais voz, ampliando seu campo de atuação das universidades e dos meios acadêmicos para alcançar de forma definitiva a opinião pública.

Ao prolongar a ocupação dos territórios palestinos, Israel coloca em risco sua existência como o conhecemos hoje. O risco, num prazo que parece cada vez mais curto, é que a pressão contra Israel se transforme em sanções econômicas e políticas como as que implodiram o regime racista da África do Sul. (Não é à toa que seus opositores insistem em classificar Israel como um Estado de apartheid.)

É possível que a votação em setembro na ONU seja mais uma das expressões de descontentamento do mundo com Israel, algo que o país considera um traço de antissemitismo, um sentimento que, na visão de muitos israelenses, faz com que o mundo sempre culpe os judeus por todos seus males. É possível também, que os votos em setembro fortifiquem a tentativa de transformar Israel em um Estado pária, algo com que um país pequeno e cercado por inimigos não pode se dar ao luxo de conviver.

O governo israelense, populista e refém de uma coalizão dominada por partidos políticos de direita, parece disposto a correr esse risco. Contam, para isso, com o incondicional apoio dos Estados Unidos, ainda que esta parceria esteja dando pequenos e leves sinais de distanciamento desde o início do governo do presidente Barak Obama. O problema é que se a estratégia der errado, aquilo que tanto se quer evitar – negociar com um parceiro mais poderoso – pode se provar a única alternativa para garantir a sobrevivência do país. Seria, é claro, um colossal tiro no pé, porque esta alternativa obrigaria Israel a chegar ainda mais combalido às mesas de negociações. Do ponto de visto geopolítico, é essencial compreender que Israel continuará buscando seus interesses em manter a frágil segurança de um pequeno país cercado por inimigos. As incertezas causadas pelas revoltas populares que se espalham pelo Oriente Médio combinadas com derrotas diplomáticas podem desembocar em um Estado de Israel que se sente ainda mais acuado e inseguro. O resultado dessa equação pode ser a elevação do risco de guerra na região.

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